Moradora de São Paulo acumulou dívidas após fazer apostas para tentar pagar dívidas com possível lucro. Para especialista, o primeiro passo é contar situação para família e buscar ajuda psicológica.
“Desde quando me entendo por gente, nunca tive controle financeiro”. A coordenadora de recepção Jennifer de Souza Silva, de 33 anos, diz à BBC News Brasil que sempre fez compras por impulso sem se preocupar em como as pagaria.
Nos últimos meses, no entanto, ela conta ter acumulado dívidas que se tornaram uma “bola de neve”.
Quando viu que não conseguiria pagar todas as contas, ela começou a participar de jogos caça-níqueis online, como o famoso “jogo do Tigrinho”, para tentar ganhar dinheiro e quitar as dívidas.
Jennifer não está sozinha. Segundo levantamento feito pela Serasa em outubro de 2024, 44% dos endividados que já apostaram relatam ter jogado com o objetivo de quitar uma dívida.
Para Jennifer a tentativa resultou em um descontrole ainda maior. Quando percebeu, ela devia não apenas para bancos, familiares, mas também para cinco agiotas.
“Perdi o controle sobre tudo. Tanto as dívidas quanto os jogos. À medida que eu perdia no jogo, me endividava mais e mais”, diz Jennifer.
Ela conta que mantinha as dívidas em segredo. Não contava nem sequer para o marido.
“Eu carregava tudo sozinha. Às vezes, até desabafava com alguém pedindo ajuda, mas nunca tive coragem de contar toda a verdade. Eu sentia muito medo e vergonha”, conta.
O marido de Jennifer só soube quando as dívidas se tornaram “impagáveis” e “a água já estava batendo no pescoço”.
“Um dia fiquei aflita porque precisava pagar um dos agiotas, mas ainda faltava dinheiro. No desespero, mandei mensagem para muitas pessoas e acabaram contando para meu marido”, diz Jennifer.
“Não foi fácil. Ele ficou muito chateado, mas foi tentando entender e está me ajudando. Me sinto mais aliviada, mas muito triste, pois estamos tentando acertar as coisas aos poucos e o sentimento de estar devendo, principalmente pessoas [agiotas], é devastador”, diz a coordenadora de recepção.
Hoje, ela organizou em uma planilha o que deve e diz que ainda tem R$ 30 mil em dívidas com agiotas e ao menos mais R$ 70 mil com bancos e familiares. O salário mensal de Jennifer é de R$ 3.600.
“Eu choro todo o tempo. Por dentro, estou sempre em uma luta de culpa”, conta.
Agiotagem no Brasil
Recorrer a agiotas foi a última opção de Jennifer, por conta das altíssimas taxas de juros que geralmente são cobradas nesse tipo de empréstimo e pela maneira, algumas vezes violenta, como as cobranças são feitas.
“Comecei pegando empréstimos com bancos. Quando não tinha mais crédito com bancos, recorri a familiares, amigos e cinco agiotas”.
Ela conta que não chegou a ser ameaçada porque conhece alguns dos emprestadores desde a infância e nunca atrasou o pagamento.
Ela conta que os empréstimos mais baratos que ela pegou com agiotas tiveram juros de 20%. Ou seja, quando pegava R$ 1.000, tinha de pagar R$ 1.200.
Mas os juros dos empréstimos maiores também foram mais elevados.
“Dois [agiotas] me emprestaram R$ 15 mil porque conheciam minha família e me conheciam desde pequena. Esses dois parcelaram em mais vezes, mas a dívida cresceu para R$ 40 mil. Foram 20 [parcelas] de R$ 2 mil”, conta Jennifer.
A economista e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carla Beni explica que a agiotagem é um empréstimo de dinheiro entre pessoas.
“Há uma possibilidade de você emprestar dinheiro para outra pessoa. Emprestar dinheiro a juros não é crime. Agiotagem é a cobrança de juros extorsivos, prevista no artigo quarto da Lei 1521, que prevê detenção de seis meses a dois anos”, explica.
A professora, entretanto, diz que após a revogação, em 1999, de uma lei que previa um limite de cobrança de juros, é difícil definir o que é uma cobrança extorsiva. O limite era de 1% ao mês de juro linear — 12% ao ano.
“Depois, chegaram a existir tarifas de mais de 500% ao ano no rotativo do cartão de crédito. A falta de uma lei dificulta [para a vítima] entrar com processo por juros extorsivos porque você não tem um número fechado a esse respeito”, explica Carla Beni.
Em tese, até um banco tradicional poderia ser condenado por agiotagem.
A economista avalia que, na teoria, “400% de juros no rotativo do cartão é agiotagem”, mas que é quase impossível uma pessoa física ganhar uma ação desse tipo contra um banco na Justiça.
Caça-níqueis online
Os jogos virtuais conhecidos popularmente como “jogo do Tigrinho” são caça-níqueis online nos quais o jogador aciona uma roleta e torce para que, ao parar, ela forme uma sequência premiada.
Jennifer conta que passou a fazer apostas nessas plataformas porque “não estava vendo o dinheiro com o valor que ele realmente tem” e viu no jogo uma maneira de quitar as dívidas.
“Na mesma hora que eu metia os pés pelas mãos, achando que daria certo, eu me sentia um lixo. Me sentia sozinha”, conta emocionada à reportagem.
Jennifer conta que foi afundando ainda mais num limbo psicológico e financeiro.
“Me sentia no fundo do poço quando jogava e perdia o que já não tinha. Isso piorava quando estava chegando as datas de pagar as pessoas. Eu já cheguei a pensar em tirar a minha vida. Assim eu acabaria com tanta dor”, conta.
Uma pesquisa da Serasa, em parceria com a plataforma de pesquisas de mercado Opinion Box, apontou que 5 em cada 10 endividados brasileiros já fizeram pelo menos uma aposta, e 34% deles continuam apostando atualmente.
Ainda segundo o levantamento, 44% dos endividados que já apostaram relatam ter jogado com o objetivo de quitar uma dívida.
Reconstrução financeira
Jennifer diz que agora trabalha para reestruturar a saúde financeira da família, repensar os erros do passado e servir como exemplo e alerta para outras pessoas em situação semelhante. Esse foi inclusive o motivo de ela ter aceitado contar seu relato publicamente.
“Eu tinha paz. Meu erro foi não dividir minhas dores com minha família. Espero poder pagar todas as pessoas, principalmente amigos e familiares, e voltar a andar com a minha cabeça erguida. E nunca mais passar por isso novamente”, diz.
Jennifer e o marido montaram uma planilha com todas as dívidas para organizar os pagamentos e não atrasar nenhuma data. A prioridade são os agiotas.
A economista e professora da FGV diz que a “recomendação número um” quando uma pessoa está em uma situação de dívida como essa é buscar ajuda.
“Essa ajuda é falar para a família. Esse é o primeiro ponto. Porque a pessoa fica tomada por um sentimento de vergonha e de fracasso. Ela tem que enfrentar uma questão moral porque a maioria das pessoas que joga faz isso escondido”, diz.
A especialista diz que muitas famílias não sabem do vício porque estudos apontam que o pico do horário em que esses jogos são feitos é das 22h às 2h — momento em que muitos filhos e parceiros já estão dormindo.
“O cônjuge não sabe que o parceiro está jogando. O filho não sabe que o pai joga, o pai não sabe que o filho joga. Primeiro é procurar ajuda porque não adianta pensar em reestruturar a questão financeira. Fazer planilha não dá. Não dá para pensar em nada disso”, diz a professora Carla Beni.
Jennifer contou à reportagem que abriu uma loja de pijamas e começou a trabalhar como motorista de aplicativo aos fins de semana para complementar a renda e pagar o que deve.
“A vida está uma correria. Mas creio que logo sairei dessa”, diz.
Graças à ajuda de amigas, que fizeram uma vaquinha, Jennifer também está recebendo acompanhamento psicológico.
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Um comentário em “Dívida de R$ 100 mil no ‘Tigrinho’ leva recepcionista a fazer empréstimo com 5 agiotas”